Rio Grande do Sul: não basta reconstruir. Tem que redesenhar
Design da reconstrução não será apenas criar novas cidades ou novos bairros, mas novos modelos de gerir cidades - e pensar o serviço público
O Rio Grande do Sul ainda está debaixo d’água, três semanas depois da catástrofe climática que atingiu a região. A lama sequer conseguiu ser retirada do Mercado Municipal de Porto Alegre e uma nova enchente deixou a capital alagada. A população sequer foi avisada de que deveria sair de suas casas – ou do que sobrou delas.
O caos mostra que, para o estado se reerguer, reconstruir não será suficiente. Ele terá que ser redesenhado. É o que defende a cofundadora e CEO da companhia de estratégia e inovação gaúcha No One, Mariana Gutheil.
“Não é uma reconstrução, é um redesign do estado. Reconstruir implica em construir de novo do mesmo jeito. E o jeito que a gente desenhou as cidades, as moradias, os serviços públicos, até agora, não dão conta da emergência climática”, afirma Mariana.
Ela está na linha de frente do atendimento voluntário a emergências em Porto Alegre. Desde que o rio Guaíba começou a encher, Mariana está apoiando resgates, organizando central de doações, conectando abrigos e, agora, coordenando ações de limpeza coletiva.
O Rio Grande do Sul tem 1,14 mil startups, 18 parques tecnológicos, 45 incubadoras e 48 instituições científicas de tecnologia e inovação.
A designer, que já foi parte do conselho de inovação digital e design do município de Porto Alegre, tem participado de reuniões com a prefeitura para apoiar a sonhada “volta ao normal” da capital.
Para Pedro Valério, CEO do Instituto Caldeira, hub de inovação arquitetado por 42 empresas e instituições gaúchas, a tragédia climática precisa ser um “ponto de inflexão” para a cidade e para o país.
“A omissão que nos levou aonde chegou não pode mais ser ignorada. É um momento importante para a gente se perguntar: qual cidade queremos ser amanhã? Qual sociedade queremos ser no futuro?”, argumenta Valério.
O Instituto Caldeira tem mais de 130 startups, em um galpão do Cais Mauá, no quarto distrito de Porto Alegre. A região era símbolo da renovação da capital do Rio Grande do Sul. Há três semanas, o espaço está completamente alagado e sem perspectivas de quando poderá ser utilizado.
A falta de informações sobre os bairros é uma constante em Porto Alegre. Moradores relatam não saber quando ou se devem voltar para suas casas. Aqueles que já voltaram foram surpreendidos pela nova enchente.
"O que estamos vivendo agora é o colapso do sistema informacional, do sistema de saneamento, de resíduos. Como garantir que o nosso sistema econômico também não entrará em colapso?”, questiona Mariana.
JORNADA DA LIMPEZA
Acostumada a lidar com empresas, a CEO da No One acredita que processos de design usados no setor privado para lançar serviços ou produtos digitais poderiam ajudar o poder público. Um dos princípios é: “coloque seu cliente no centro”.
“Essa lógica de design de serviço, com os dados conectados e a jornada pensada de forma completa, facilitaria a interação da população com o órgão público e o compartilhamento de informações na hora de emergência”, diz Mariana.
A aplicação deste ideal faria diferença no sistema de limpeza urbana de Porto Alegre neste momento de emergência. A prefeitura pediu para que as pessoas deixassem o entulho e a lama tóxica nas calçadas. Não houve indicação do momento correto para fazer isso. Assim como não houve comunicação sobre as áreas prioritárias para limpeza pública.
O resultado? Muitos que voltaram para casa colocaram a saúde e a segurança em risco, já que entraram em contato com água e lama infectadas. As ruas da cidade estavam tomadas de lixo quando chegou a chuva da última quinta-feira. O sistema de esgoto, já operando acima da capacidade, colapsou.
Para Mariana, a limpeza, por exemplo, poderia ser conectada com outros serviços, como os avisos da Defesa Civil, os protocolos da área de saúde e os registros do município. Assim, entraria no serviço de limpeza urbana também a comunicação com o público, dando previsibilidade para as pessoas.
A resposta rápida a emergências é apenas um dos resultados de um governo inteligente e conectado com os cidadãos, explica Téo Foresti Girardi, CEO e fundadora do GovTech Lab, programa de fomento para apoiar a transformação digital do poder público.
Responsável pelo GovTech Summit, evento que teria sua terceira edição agora em junho em Porto Alegre, o Lab impulsiona o diálogo de municípios e estados com criadores de soluções tecnológicas voltadas para o poder público.
“Há chance de o Rio Grande do Sul ser um case de governo inteligente, que olha para o futuro e cuida do bem-estar social. Mas isso passa por uma transformação cultural e administrativa”, acredita Girardi. A capacidade de entender novas linguagens, como a do design digital, é uma dessas mudanças urgentes.
TEM, MAS TÁ EM FALTA
Para adotar novas perspectivas, um caminho é se conectar com quem vive de criar olhares diferentes: as startups e o ecossistema empreendedor.
O Rio Grande do Sul tem 1,14 mil startups, 18 parques tecnológicos, 45 incubadoras e 48 instituições científicas de tecnologia e inovação. Tudo coordenado por programas do poder público, como o Inova RS e a Rede Gaúcha de Ambientes de Inovação (Regnip).
O estado foi um dos primeiros do país a seguir o Marco Legal das Startups e aprovar uma lei para incentivar municípios a se conectarem com o ecossistema empreendedor.
No GovTech Lab, por exemplo, dá para encontrar startups que oferecem sistemas de gestão de recursos hídricos e de previsões meteorológicas hiperlocais. Há também uma plataforma discreta para a denúncia de violência doméstica.
A mitigação climática e a resposta à emergências não estavam na agenda do governo.
Nos últimos dias, o GovTechLab tem feito a curadoria de ferramentas que podem ser usadas por municípios gaúchos tanto para aliviar os impactos da crise quanto para planejar os próximos passos da reconstrução. O objetivo é criar um portfolio para um “serviço público proativo”.
DESLOCADOS CLIMÁTICOS
O Rio Grande do Sul tem mais de 650 mil pessoas desabrigadas ou deslocadas por causa das enchentes. A tecnologia e a inovação precisam chegar a essa população. Tanto neste momento agudo da crise quanto nas próximas etapas. Saúde, educação e empregabilidade devem estar na pauta tanto quanto a construção de casas e bairros para quem perdeu tudo.
“A crise do clima é uma crise de direitos humanos sem precedentes. Não tem como repetir o que foi feito até agora”, afirma Naira Santa Rita Wayand, fundadora e diretora executiva do Instituto DuClima, que combate o racismo ambiental no Brasil.
embora o estado ainda esteja longe de pensar na reconstrução, agora é o momento de criar as estruturas para um governo “smart”.
Naira apoiou a produção do projeto de lei que institui a Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos (PL 1594/ 2024), proposto pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP) .
O projeto propõe estabelecer instrumentos econômicos, financeiros e socioambientais para dar apoio contínuo a populações atingidas por eventos climáticos. Também traz uma mudança de mentalidade para o país pensar nos deslocados climáticos. Só em 2023, mais de 745 mil pessoas no Brasil foram obrigadas a sair de casa por causa de enchentes, secas e tufões extratropicais.
“Precisamos trabalhar para que os próximos eventos climáticos sejam menos nocivos e catastróficos para a população. E lembrar que se trata de pessoas, não de estatísticas”, diz Naira. A líder do Instituto DuClima fala do deslocamento ambiental com propriedade. Ela mesma já fez parte desse grupo. Naira morava em Petrópolis, no morro da Oficina.
Em fevereiro de 2022, fortes chuvas na região serrana do Rio de Janeiro deixaram 235 mortos e quatro mil desabrigados e desalojados. Naira foi obrigada a mudar de cidade com o filho, a mãe e o cachorro. Desde então, a ativista estudou sobre o tema de deslocados, desabrigados e refugiados climáticos. “Não gostaria que ninguém passasse pelo que eu passei”, conta.
Até fevereiro de 2024, dois anos depois do desastre, a cidade fluminense ainda não havia finalizado as obras de infraestrutura. Mais de três mil pessoas seguem recebendo o aluguel social, já que a reconstrução de moradias também não foi finalizada. Não se trata apenas de ter uma casa, mas de garantir que as pessoas tenham dignidade.
Na visão de Girardi, do GovTechLab, embora o estado ainda esteja longe da fase de pensar na reconstrução, agora é o momento de criar as estruturas para um governo “smart”. “Será preciso uma gestão inteligente para organizar os espaços provisórios e as cidades temporárias.”
Soluções de gestão digital de documentos, bem como de análise de dados e de gerenciamento de estoques de alimentos e remédios funcionarão para a emergência, mas também serão bem utilizadas em tempos de “normalidade”.
Mariana Gutheil, da No One, lembra que até o estado estar completamente adaptado aos desastres climáticos, outros vão acontecer. As estruturas montadas de forma emergencial precisarão aguentar o tranco e serem igualmente resilientes.
No curto prazo, há muito a ser resolvido. Pensar em materiais para melhorar o conforto e a privacidade do espaço coletivo; garantir que as construções tenham baixo impacto de emissão de carbono; manter a comida fresca e nutritiva para todos. “Tudo isso é puro design”, “comenta.
No segundo momento, Naira aposta na reconstrução de comunidades e na identidade de quem perdeu tudo. Longe de suas casas, de seus bairros e suas cidades, muitos serão forçados a se mudar. Serão, como Naira, pessoas “desenraizadas”, que precisarão encontrar solo firme para se firmar e voltar a crescer.
“O Rio Grande do Sul vai virar vitrine para o Brasil e para o mundo”, diz Naira. Para o bem ou para o mal.